Globalização e periferia

Uma das grandes riquezas das metrópoles se apresenta na periferia, com suas expressões culturais comunitárias. Apesar de serem estigmatizadas pela mídia que constrói estereótipos desse mundo, esse imaginário está mudando. Já há estudos que apontam para uma “estética da periferia”, com interações com a chamada grande arte.
por Valmir de Souza

Uma anedota contada por Slavoj Zizek em Bem vindo ao deserto do real! nos diz: “Um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: ‘Vamos combinar um código: se uma carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira’. Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: ‘Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa – o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha’”.

Ao circular pelas bordas da cidade de São Paulo, constata-se uma imensa variedade de culturas: praticantes de aulas de expressão teatral e dança, poetas fazendo intervenção, ativistas promovendo músicas populares mixadas, grupos em aula de computação, artistas produzindo seus vídeos, rappers da “perifa”, feiras culturais, performances das mais diversas linguagens, enfim fazedores de culturas vivas na cena urbana brasileira. São movimentos que reivindicam e fazem mais cultura, grupos que se organizam com temáticas gerais ou específicas (meio ambiente, moradia, economia da cultura etc.). Em lugares deteriorados por falta de investimento público, surgem grupos, artistas, atores, movimentos que promovem atividades inovadoras e dão vida ao caos. Tudo isso compõe um cenário efervescente e dinâmico de políticas e gestões culturais independentes e audaciosas.

Nas margens do “hiperliberalismo” globalizado emerge uma terceira cultura que aponta para novas e sutis realidades, “cidades periféricas” com sua própria centralidade, formando movimentos de convivência e redes culturais que criam novos modos de vida em comunidade.

Esses agentes locais nadam na contracorrente da lógica que nega direitos sociais e provoca segregação, isolamento, miséria e falta de infraestrutura, formando um caldo de cultura da violência que entra nos poros da sociedade. Resultado: esgarçamento das energias dos que vivem do trabalho e perda de pertencimento comunitário, tendo como subproduto o assassinato de jovens negros e mestiços.

NA PERIFERIA DAS CIDADES

Esses movimentos sociais emergiram a partir dos anos 1990 e se constituíram por jovens das bordas da cidade com baixíssimo poder aquisitivo. Como afirma Graciela Hopstein: “Trata-se de movimentos que, por intermédio de estratégias de produção cultural, buscam alternativas para uma dinâmica urbana marcada por um alto grau de segmentação, estratificação e exclusão, isto é, por profundas desigualdades sociais (velhas e novas) no que diz respeito à organização da produção e aos modos de fixação e mobilidade no território da cidade.”

São movimentos e atores de subúrbios considerados “feios, sujos e malvados”, aliás, glamourizados pela mídia, mas que não têm o direito de circular pelas áreas “nobres” da cidade. Quando as artes periféricas são abordadas, as opiniões se dividem. Por um lado são vistas como dinâmicas, pulsantes e cheias de vida; por outro, são vistas sem legitimidade para participar dos espaços consagrados, já que sua estética ainda não teria atingido a maturidade artística como uma “arte de museu”.

Mas o imaginário sobre esses movimentos vem sofrendo mudanças ao longo do tempo. Há vários estudos que apontam para uma “estética da periferia”, inclusive com interações com a chamada grande arte. Uma outra estética é apontada pelos estudiosos: estética do prazer de viver e de afirmação política que partilha sentidos vividos. Por exemplo, os movimentos funk do Rio de Janeiro queriam ser reconhecidos pela alegria de se dançar e se expressar culturalmente, em contraponto à imagem produzida pela mídia como grupos violentos. Vê-se aí a contradição do morro e do asfalto, espaços geoculturais que evidenciam uma luta pela sua ocupação.

Sem pretender “essencializar” as culturas periféricas como algo acabado – já que são culturas com alto grau de “inacabamento” por serem vivas e pulsantes –, e para além dos slogans da mídia, é preciso considerar que esses atores ressignificam os espaços públicos com intervenções inovadoras. Não devem ser vistos como uma “reserva” cultural, mas sim como interlocutores legítimos que dialogam com os discursos das mídias, das manifestações urbanas e das artes consagradas, produzindo uma mixagem cultural.

BOLSÕES DE RESISTÊNCIA

Estamos num momento de superação do binômio centro/periferia, pois os intercâmbios sociais levam ao cruzamento de barreiras geoculturais. Os mapeamentos nos informam que a comunicação urbana desses novos atores culturais transbordam as atividades locais. As práticas de periferia deixam seus signos em vários trajetos e percursos da cidade, operando com interações artísticas questionadoras do establishment. Por exemplo, os grafites enunciam um modo de comunicação com interações de grupos distintos, disputando territórios físicos e simbólicos, ou mesmo construindo relações de solidariedade com outros “pedaços” urbanos, evidenciando uma dinâmica viva no fazer cultural.

Nesses bolsões de resistência, são produzidos saraus, noitadas culturais, atividades de formação cultural etc., como é o caso da Cidade Tiradentes, “bairro” da Zona Leste de São Paulo. Ali há uma vida social e cultural intensa com a presença de movimentos de hip hop, grafite, teatro de rua, vídeo, direitos humanos etc. O Grupo de Teatro Pombas Urbanas se fixou ali, realizando espetáculos, encontros e oficinas teatrais, em um rico diálogo intercultural.

Entidades de cooperação, como o Centro Cultural da Espanha em São Paulo, em parceria com o Instituto Pólis, promoveram ali o Mapa das Artes da Cidade Tiradentes, ação essa que se tornou o “registro de uma geração”, conforme relata Daniel Hylário, agente cultural daquele bairro que trabalha com uma Rede de Artistas da região.

Mas não bastam investimentos pontuais, é preciso ativar os fundos públicos nessas regiões, juntamente com uma mudança de modelo de gestão territorial que considere a criatividade da população e sua economia criativa. Com isso, também é preciso considerar os limites dos recursos da sociedade civil na resolução da exclusão social, não por incapacidade da comunidade, mas porque é papel dos poderes públicos (prefeitura, estado e união) garantir o acesso e a promoção dos direitos sociais, culturais e ambientais. Destaque-se, nesse aspecto, o papel do Projeto VAI na promoção e incentivo de produções culturais prioritariamente de grupos com menor capacidade financeira, uma experiência de política pública com grande estabilidade e inovadora, realizado na cidade de São Paulo.

Alguns grupos de grafite saem de seus lugares para fazer uma ocupação da cidade através de escritas (textos, grafites, poemas), o que torna as cidades lugares de linguagens, evocações, sonhos, desejos e imagens, compondo um cenário de intenso diálogo cultural, o que mostra que essas práticas não querem se isolar em suas “reservas”. Eles incidem no território urbano através de uma comunicação que transforma a cidade em espaço polifônico com narrativas que demarcam territórios e revelam práticas invisíveis. Suas atitudes buscam uma política de convivência no espaço da grande cidade: querem ser reconhecidos pelo que são, com a imagem que desejam mostrar.

Noutra ponta da cidade, na Zona Sul de São Paulo, a Cooperifa promove uma intensa movimentação, com a participação maciça de moradores jovens que se interessam pela questão cultural. Os saraus ali promovidos todas as semanas são sempre muito frequentados. Há também outros locais em que se realizam saraus na Zona Sul da cidade, como o do Binho. Além de serem lugares de apresentação artísticas, os vários espaços socioculturais da Zona Sul também abrigam os “novos literatos marginais” que fazem resistência e buscam publicar suas obras e, para isso, se organizam em cooperativas e microeditoras, bem como se inscrevem em editais públicos para produzir suas obras.

Em um cenário de subemprego e carência de equipamentos culturais, é de se destacar o caso emblemático de Ferréz: um dos autores que entrou na cena literária do bairro Capão Redondo, com vários livros publicados, entre eles, Capão Pecado. Como produtor cultural divulga os produtos locais na região e no centro da cidade. Vindo de uma “realidade triste”, ele comenta: “Sou como qualquer cidadão da periferia, a única diferença é que eu gostava de ler. Essa diferença me salvou.” Esse exemplo prova que há uma economia da cultura com potencial de criar empregos e renda para a população local sem que tenha de sair de lá.

O ativismo literário vem assumindo relevância nos debates sobre as periferias, acentuando-se a necessidade de conhecer melhor qual a função dessa arte nesses espaços e seu sentido para a cidade. Essa produção cultural tem dialogado intensamente com outras expressões socioculturais, como o grafite, o rap e outras modalidades urbanas, configurando-se como vozes de comunidades silenciadas no meio urbano.

Além de ser instrumento de intervenção social ou política, a literatura é poderoso meio de interpretação da realidade sensível das regiões limítrofes, na qual se produzem textos inconformistas com “a vida como ela é”, e as realidades impostas pelos grupos hegemônicos da sociedade midiática (rádio, TV, jornais).

Com suas artes, os novos atores representam dramaticamente seus modos de estar nos territórios muitas vezes arredios ao fazer cultural e à própria vida, mostrando sociabilidades ainda não percebidas no cenário contemporâneo, fazendo-se ser reconhecidos como sujeitos culturais legítimos na cidade. Suas produções culturais se afirmam com visão própria, com “estéticas” que denunciam a exclusão social decorrente de intervenções das transnacionais e criam espaços de sociabilidade comunitária, inclusive dialogando com a lógica que procura fazer da “diferença” mais uma mercadoria. São artes com “linguagens íntimas na comunicação entre jovens, quando buscam se entender e se conhecer em resposta às questões existenciais” e que “podem estimular a indignação frente às injustiças sociais e são inspiradoras de mudanças de atitude no papel da sociedade civil.”

CULTURAS LIVRES

Movimentos sociais de cultura de diversas partes do Brasil se mobilizam e se manifestam pelas práticas das culturas “livres” e pela ocupação dos espaços públicos. Um dos palcos dessas manifestações são as grandes metrópoles. Cabe a uma política de cultura democratizante impulsionar essas práticas, apoiando-as e abrindo mais espaços para uso de todos.

O campo da cultura é um lugar de disputas simbólicas, econômicas e sociais, e nele devemos atuar contra todas as formas de exclusão contemporânea, radicalizando a política de cultura com uma cultura política que direcione recursos públicos para projetos coletivos e individuais. A Cidade Tiradentes é uma cidade criativa, e ali a cultura exerce função primordial de agregação social e existencial, com uma rica diversidade artística. Um projeto de economia criativa, a ser financiado pelas agências públicas, precisa levar em consideração essa variedade cultural, investindo maciçamente nas regiões mais vulneráveis do ponto de vista social. Faz-se necessário investir aí, juntamente com o melhoramento da infraestrutura cultural e o incentivo da produção de bens e serviços artísticos.

É preciso fazer que as políticas públicas de cultura desenvolvam projetos que deem visibilidade a esses atores desconhecidos através de projetos coletivos na internet com blogs e sites, propiciando manifestações e agregações de movimentos sociais, com espaços virtuais que tenham a gestão das comunidades. Os coletivos já se organizam, mas é preciso reforçar essas organizações no contexto de cibercultura democrática que deve servir para expor os outsidersno cenário das cidades e nas “telas visíveis” mundiais.

Esses movimentos e grupos apontam, com outros atores sociais e culturais, para a reconstrução do percurso das diversas práticas existentes no Brasil e no mundo: como fator de coesão são práticas inquestionáveis e, ainda que não possamos prescindir dessa dimensão fundamental, é preciso atentar para o fato de que os conflitos instaurados pelo ethos vigente vão além da visão artística. A natureza política e econômica desses conflitos pode bloquear as heterogeneidades culturais e transformá-las em produto consumível, neutralizando o potencial crítico desses atores.

De qualquer maneira, essas vozes dissonantes interagem no cenário social e cultural, ora tomando as ruas, ora fazendo a resistência cultural no cotidiano. Apesar das catástrofes do “turbo capitalismo”, as culturas locais tecem uma trama composta por um conjunto de linhas afetivas e sociais que criam realidades inusitadas, fazendo que, através de uma poética social de suas vivências, experiências, referências e conteúdos culturais ampliem os direitos culturais na direção do direito às cidades brasileiras.

Como afirma a Carta das responsabilidades do artista, os artistas devem “fortalecer intercâmbios e oportunidades de diálogo intercultural, base de novos paradigmas para uma humanidade que leve em conta a paz, a ética e o reencantamento do mundo.”

Enfim, a diversidade cultural das periferias deve abrir caminhos para o pensamento crítico, criativo e cooperativo das artes que elaboram novas realidades sensíveis e novos paradigmas de criatividade colaborativa.

Valmir de Souza é doutor em Teoria Literária pela USP, pesquisador-associado da Área de cultura do Instituto Pólis e autor do livro "Cultura e literatura: diálogos". Faz parte da diretoria do Sindicato dos professores e professoras de Guarulhos (SIMPRO Guarulhos).

Identidade brasileira?

“Identidade brasileira é mistura, abertura, sincretismo, miscigenação...” – esse velho papo-furado de designer/marqueteiro sempre me incomodou.
por Marcos Beccari

Quando o assunto é identidade cultural, o lugar comum para se evitar a enxurrada bosta-nova do futebol, samba e carnaval é falar de uma suposta mistura cultural entre regiões, sotaques, etnias, folclores, etc. Ora, eu sou brasileiro e, assim como boa parte dos brasileiros, nunca tive contato direto com uma xilogravura nordestina, por exemplo. Logo, não me parece que a identidade (unidade de características de diferenciação) brasileira seja tão plural e eclética como se diz por aí.

Os designers em geral, comprometidos com a originalidade e o ineditismo, costumam ter uma noção confusa e duvidosa com relação a identidades nacionais (não somente a brasileira). Afinal, em tempos de globalização e geração y, como definir os traços que caracterizam um povo perante os demais? Particularmente, acho interessante a perspectiva de Rafael Cardoso (2008) sobre a identidade como algo indissociável do conceito de memória.

Acima da influência do contexto circundante, além dos próprios traços hereditários ou inatos, aquilo que torna uma pessoa diferente das outras é a consciência que ela tem de si mesma. Essa consciência está relacionada a uma realidade interior, a experiências pessoais e, portanto, à memória. Em nível coletivo, podemos pensar em movimentos históricos e hábitos populares. Neste sentido, o grande dilema do designer é absorver este grande repertório “memorial” sem deixar a sua própria identidade de lado, isto é, fazer da experiência coletiva e da experiência individual uma única memória a ser projetada. 

Para ilustrar o que eu quero dizer, destaco o trabalho do designer mineiro, e bom amigo, Vicente Pessôa. Creio que uma experiência decisiva em sua trajetória foi o fato dele ter trabalhado com o ceramista Máximo Soalheiro, atuando como observador atento para incorporar um universo no qual os designers não estão imersos. Dentre os poucos designers que eu conheço que também não ignoram as manifestações perpetuadas por muitos anos através do saber popular, vale a pena conferir o trabalho de Tide Hellmeister e Hugo Werner.

Com estes poucos exemplos, creio que é possível notar que a identidade nacional é também indissociável do Imaginário Social: o estado de espírito que caracteriza um povo, uma aura da Cultura, no sentido de ser uma atmosfera que a envolve e, mais que isso, que apresenta características que a antecedem. É assim que o sociólogo Michel Maffesoli (2008) entende a noção de identidade cultural, quase como uma moldura perceptível apenas através da ambiguidade, isto é, aquilo que está ao mesmo tempo oculto e flagrante no cotidiano – confira este artigo para uma visão mais abrangente da relação entre o Design e o pensamento maffesoliano.

O fato é que, se não levarmos em consideração essa moldura que nos enquadra em determinada memória cultural, corremos o risco de uma crescente despersonalização de nós mesmos a favor de uma identidade internacional, de caráter impessoal e universal. Do mesmo modo, a busca por inspirações regionais, vernaculares e popularescas, fugindo porém de nossa memória pessoal e não havendo vínculo algum com aquilo que nós somos e vivenciamos, geralmente resulta em projetos artificiais, impessoais e carentes de significado.

Em ambos os casos, trata-se do pior sentido do termo kitsch, conforme é definido por Milan Kundera (1985, p. 279) em A Insustentável Leveza do Ser: “O kitsch é a negação da merda. (...) O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento”. Evidentemente, há também projetos que exploram conceitualmente o kitsch em si, aproveitando-se do estranhamento fragmentário de uma aparente falta de identidade de maneira paradoxalmente criativa e autêntica – exemplo disso é este inusitado cartaz desenvolvido por Flávia Nalon. 

Mas o que, afinal, caracteriza a identidade brasileira? Em rápidas palavras, a vivência de uma nostalgia. Não se trata apenas daquilo que já somos (de nossa memória em si), mas especialmente daquilo que desejamos ser, ou seja, o modo pelo qual emolduramos a nossa vida e que nunca está inteiramente explícito no cotidiano (embora implícito em cada um de nós). Pois este desejo é despertado apenas por nossa memória: quando eu vou pra São Paulo, por exemplo, sinto imenso desejo de comer yakisoba na rua.

Neste momento, eu lembro e sei que eu sou paulista, que aquela cidade sou eu. Portanto, mais do que o carnaval ou o futebol, pra mim o yakisoba paulista representa o Brasil. Mas este yakisoba pode representar a identidade brasileira a nível coletivo? Sem dúvida – basta que, enquanto designer, eu consiga expressar essa minha nostalgia de modo que ela também desperte a nostalgia de outros brasileiros, com outras vivências e memórias. 

Há um fundo familiar nisso tudo. Mas há também um fundo impessoal, kitsch e aparentemente forçado, o qual nos dá a impressão constante de não haver uma verdadeira identidade brasileira. Frente a isso, prefiro pensar na noção matemática de identidade algébrica: quando não importa quais são as variáveis e o resultado é sempre igual.

Marcos Beccari nasceu em São Paulo/SP, formou-se em Design Gráfico pela UFPR e atualmente tem lutado contra o tempo para terminar seu Mestrado em Design na UFPR.

original Humanus

A produção social de vulnerabilidade urbana

Em que pese a importância das melhoras inegáveis nas condições de vida nas cidades brasileiras, ainda que insuficientes, é preciso considerar a persistência de problemas estruturais que geram precariedades, desigualdades e vulnerabilidades nos espaços urbanos
por Kazuo Nakano
 
Em 2011,a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) completa dez anos, após treze de tramitação no Congresso Nacional. Todo esse processo foi acompanhado por ampla mobilização social desde o início da Assembleia Constituinte em 1987. Contudo, a sua implementação nos municípios brasileiros ainda deixa muito a desejar.

E como a implementação do Estatuto da Cidade deve ocorrer? Por meio dos planos diretores instituídos por lei municipal. Por diversas razões técnicas e políticas, muitos desses planos diretores permanecem no papel e não tornam realidade o cumprimento da função social das cidades e propriedades urbanas. Ainda não temos processos permanentes e consistentes de planejamento e regulação territorial que promovam formas justas, democráticas e sustentáveis de uso e ocupação do solo. O que pensar diante desse estado da arte da política urbana nacional?

Paradoxalmente, as cidades brasileiras nunca precisaram tanto de políticas, ações, investimentos e regulações públicas capazes de controlar e limitar a apropriação predatória e excludente das terras urbanas e rurais. A permanência desse modo de apropriação do solo ainda gera muitas situações de exclusão e vulnerabilidades socioterritoriais que expõem grupos populacionais a diferentes tipos de riscos, perigos e ameaças.

Boa parte dos espaços das cidades, nos quais vive mais de 80% da população nacional, ainda se coloca como meio ambiente construído com níveis variáveis de contaminação das águas e do ar, com moradias populares insalubres, com várias áreas de risco e altos déficits de espaços públicos e equipamentos comunitários com boa qualidade. Se todos esses espaços contassem com os benefícios requeridos pela vida urbana, constituiriam dispositivos potenciais capazes de promover uma mais justa distribuição de riquezas coletivas para todos e não beneficiariam somente os mais ricos. Um país rico deve, sim, ser um país sem miséria, mas deve também ser um país com cidades seguras, saudáveis, equitativas, democráticas e que propiciem o desenvolvimento das melhores capacidades humanas.

ALGUNS AVANÇOS

Nas duas últimas décadas, as condições de vida nas cidades brasileiras tiveram melhoras inegáveis, ainda que insuficientes em diferentes aspectos. Sinais dessas melhoras podem ser vistos no aumento da rede de distribuição de água, apesar de a maioria da população viver sem acesso a soluções adequadas para a coleta e destinação final de esgotos e resíduos sólidos. Esse descompasso no saneamento ambiental faz com que rios, córregos e represas localizados em áreas urbanas sejam contaminados por grande quantidade de lixo e efluentes líquidos, prejudicando os mananciais hídricos, a qualidade de vida e a saúde coletiva. Outros sinais dessas melhoras podem ser vistos também no aumento da oferta de serviços e equipamentos básicos de educação, saúde e assistência social, distribuídos em diversas regiões do país. Entretanto, em muitos lugares essa ampliação da cobertura não traz boa qualidade na prestação desses serviços públicos essenciais.

Podemos creditar essas melhoras também aos efeitos benéficos trazidos pela retomada do crescimento econômico, pela subida no valor do salário mínimo, pela geração de empregos formais em diferentes setores econômicos e pelos programas de transferência de renda que elevam, ainda que timidamente, os níveis de renda dos grupos sociais mais pobres. Com isso nota-se pequena redução nas desigualdades sociais e um aumento na capacidade de consumo da população, que ocasiona certa expansão no mercado interno do país. O que é impulsionado também pelo crescimento na oferta de créditos em instituições financeiras públicas e privadas. Entretanto, é preciso diferenciar o consumidor do cidadão. Em muitos lugares, o aumento na capacidade de consumo não se traduz na concretização da cidadania e dos direitos sociais previstos em nossa Constituição Federal.

Ademais, o consumo desenfreado eleva a quantidade de resíduos sólidos que sobrecarregam os lixões (ilegais) e aterros sanitários, cujos efeitos deletérios perduram por muito tempo depois da sua desativação. Grandes quantidades de materiais recicláveis, com bom valor econômico, são perdidas nesses locais. Tal problema aparece de modo mais grave quando se considera a insuficiência de iniciativas visando redução, reutilização e reciclagem na gestão desses resíduos. A expectativa é que a recente aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos consiga mudar esse quadro.

Em que pese a importância das melhoras inegáveis nas condições de vida urbana, ainda que insuficientes, é preciso considerar a persistência de problemas estruturais que geram precariedades, desigualdades e vulnerabilidades nas cidades brasileiras.

Problemas estruturais que impõem limites e bloqueios aos avanços nessas melhoras e, em médio e longo prazo, podem provocar retrocessos. São problemas diretamente relacionados aos padrões desiguais e predatórios de ocupação do solo urbano e rural por parte de agentes do mercado fundiário e imobiliário que operam em âmbitos formais e informais. São circuitos históricos sendo atualizados pela remercantilização de espaços urbanos capturados pelas lógicas contemporâneas de diferentes frações de capitais. Agentes do mercado imobiliário, altamente capitalizados com recursos obtidos no mercado financeiro, são favorecidos pela oferta de créditos públicos e privados para a produção e aquisição imobiliária. Circuitos da “financeirização” dos espaços urbanos também operam na implantação de grandes empreendimentos comerciais1 e de projetos urbanos voltados para a renovação de áreas degradadas em favor dos negócios imobiliários. Alguns desses projetos se aliam às estratégias dos grandes eventos culturais e esportivos.

Os investimentos públicos em serviços, equipamentos e infraestrutura urbana se associam a essas frações do mercado fundiário e imobiliário e se distribuem de modo desigual nos espaços das cidades, em detrimento das áreas produzidas irregularmente e ocupadas pelos mais pobres. Beneficiam os que podem pagar os altos preços dos terrenos e edificações urbanizados adequadamente. Os investimentos públicos em infraestrutura de saneamento básico, drenagem, iluminação pública e fornecimento de energia elétrica antecedem a ocupação e a instalação de atividades nesses espaços, que precisam ser também devidamente conectados com os sistemas viários, comércios e polos de emprego da cidade. Com efeito, são espaços bem servidos por áreas verdes e locais destinados a equipamentos comunitários.

Já nos espaços urbanos produzidos pelas frações informais do mercado fundiário e imobiliário, geralmente localizados nas periferias das cidades onde as terras são mais baratas, ocorre processo inverso. Nesses espaços apropriados pelos grupos com menor poder aquisitivo, a ocupação e a edificação ocorrem antes da construção e instalação dos atributos básicos da urbanização adequada. Em geral, a apropriação da terra ocorre irregularmente, à margem das normas e legislações urbanísticas. Os investimentos públicos em serviços, equipamentos e infraestrutura urbana básica ocorrem anos depois, às vezes décadas após a chegada dos moradores e de atividades não residenciais. Muitas vezes, esses investimentos são realizados pelo poder público como se fosse um favor, uma dádiva comumente retribuída com votos e fidelidade eleitoral.

Vale dizer que alguns espaços urbanos produzidos irregularmente, após se consolidarem a partir dos investimentos públicos e privados, entram na mira de interesses de agentes do mercado imobiliário formal voltado para a classe média e alta. Nesses casos, os moradores de baixa renda acabam saindo desses espaços para viver em bairros mais baratos, alimentando os ciclos de “periferização” das periferias, especialmente nas metrópoles em expansão.

UM PROCESSO DE OMISSÕES HISTÓRICAS

O processo de produção desses espaços urbanos irregulares é fruto de omissões históricas do poder público tanto em relação às ações regulatórias e fiscalizatórias quanto em relação à provisão de solos urbanizados adequadamente. Tal processo varia de um local para outro. Pode ocorrer por meio da ocupação irregular de glebas e terrenos por grupos de famílias de baixa renda que sofrem necessidades habitacionais ou através da implantação de loteamentos clandestinos construídos e comercializados irregularmente. São processos que geram os chamados assentamentos precários e informais, como as favelas e muitos bairros populares que compõem as imensas periferias urbanas. Muitos desses assentamentos, construídos com pouco ou nenhum acompanhamento técnico, encontram-se em dunas, encostas e topo de morros onde os solos apresentam risco de deslizamento. Encontram-se também em mangues, várzeas inundáveis e áreas de proteção aos mananciais. Nos meses de verão, com a intensificação das chuvas, vários desses assentamentos protagonizam notícias de desastres e tragédias, muitas vezes letais. Toneladas de terra e rochas rolam sobre moradias e bairros inteiros, predominantemente ocupados por famílias pobres, ceifando a vida de centenas de pessoas. Águas poluídas, transmissoras de doenças, invadem ruas e edificações provocando perda de bens, saúde e vidas. Essas notícias e ocorrências se repetem ano após ano.

Em suma, os grupos sociais e agentes econômicos que podem pagar acessam às melhores terras urbanas. Aqueles que não têm recursos pagam o pouco que têm para viver nas periferias distantes, em terras urbanizadas inadequadamente, na vulnerabilidade, sob risco. Sim, em nossas cidades paga-se para morar em áreas de risco por falta de alternativas.

Além dessas desigualdades e segregações socioterritoriais, um dos piores efeitos da preponderância da lógica do capitalismo periférico na urbanização brasileira, com baixo nível de regulação pública sobre a atuação dos agentes mercadológicos, é a expansão periférica das grandes e médias cidades do país. Expansão periférica que pode levar à desintegração entre os bairros das cidades, permeados por glebas e terrenos ociosos. Paradoxalmente, o crescimento urbano horizontal convive com redução no número de moradores nas áreas centrais e intermediárias das maiores cidades, melhor servidas por acessibilidade, empregos, serviços, equipamentos e infraestrutura.

PREDOMÍNIO DO TRANSPORTE INDIVIDUAL

Os efeitos negativos das grandes distâncias entre locais de moradia, trabalho, consumo, estudo, entre outras atividades urbanas, se agravam com o predomínio do automóvel individual na matriz de mobilidade urbana. Tais efeitos são mais nocivos pela falta de integração das diferentes modalidades de transporte público de massa com ciclovias e bons caminhos para pedestres. O predomínio dos automóveis nos deslocamentos intra e interurbanos sobrecarrega o sistema viário principal com congestionamentos quilométricos causando acidentes graves, gerando desgaste físico e psicológico, e produzindo deseconomia. Ademais, eleva o consumo de combustíveis fósseis, não renováveis, responsáveis pela emissão de boa parte dos gases tóxicos que contaminam o ar das cidades, provocando sérios problemas respiratórios. Tais gases podem estar contribuindo para as mudanças climáticas e o aquecimento global cujos efeitos apontam para novas formas de vulnerabilidade socioterritorial.

A expansão urbana horizontal sobre áreas periurbanas pode avançar, de modo precário, sobre solos agricultáveis, nascentes de rios e córregos, áreas de interesse ambiental e de proteção aos mananciais. Em algumas cidades essa expansão contribui para o desmonte de cinturões verdes formados por pequenos produtores de frutas, verduras, legumes e por criadores de aves e pequenos animais. Isso afeta o abastecimento alimentar dos moradores dessas cidades, obrigados a “importar” produtos de lugares distantes, muitas vezes com desperdício e sem a riqueza nutricional das variedades naturais. É importante começar a pensar na criação de circuitos curtos entre produção, distribuição e consumo de alimentos em áreas urbanas e rurais. Tais circuitos podem envolver agricultores familiares, produtores de alimentos sem agrotóxicos, cujas atividades já articulam novas relações entre as cidades e o campo. Esses alimentos podem muito bem ser comprados pelos poderes públicos locais para abastecer as merendas escolares e restaurantes populares, entre outros equipamentos de distribuição.

Diante desse quadro das cidades brasileiras, como analisar o atual momento da política urbana do país?

É preciso dizer que, apesar dos avanços jurídicos e institucionais ocorridos nas duas últimas décadas, estamos em um momento crítico. Grandes investimentos públicos estão sendo feitos nos espaços urbanos do país, tanto na instalação de infraestrutura quanto na produção habitacional. As grandes e médias cidades vivem um boom imobiliário produtor de excrescências como loteamentos fechados e condomínios verticais constituídos por torres de apartamentos.

Nessas cidades vigoram práticas de formulação de planos diretores sem previsão de obras estruturais. A realização de obras ocorre desassociada de processos de regulação e planejamento urbano. A implementação do Estatuto da Cidade está praticamente paralisada; a construção do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social caminha a passos de tartaruga; o marco legal do saneamento ambiental ainda está para ser colocado em prática; e a Política Nacional de Mobilidade não saiu do papel.

Nesse contexto, a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, iniciada pelo Ministério das Cidades em 2003 e interrompida em 2005, simplesmente inexiste. É urgente reorientar esse Ministério para a concretização da reforma urbana no país. É urgente arrancar o controle dos processos de produção dos espaços urbanos das coalizões políticas conservadoras, clientelistas e patrimonialistas, que privilegiam somente o valor de troca do solo das cidades em detrimento dos espaços para o exercício dos direitos e vida social. Diante de tudo isso, é mais que urgente articular redes e coalizões em defesa do Direito à Cidade.

Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp).