Identidade brasileira?

“Identidade brasileira é mistura, abertura, sincretismo, miscigenação...” – esse velho papo-furado de designer/marqueteiro sempre me incomodou.
por Marcos Beccari

Quando o assunto é identidade cultural, o lugar comum para se evitar a enxurrada bosta-nova do futebol, samba e carnaval é falar de uma suposta mistura cultural entre regiões, sotaques, etnias, folclores, etc. Ora, eu sou brasileiro e, assim como boa parte dos brasileiros, nunca tive contato direto com uma xilogravura nordestina, por exemplo. Logo, não me parece que a identidade (unidade de características de diferenciação) brasileira seja tão plural e eclética como se diz por aí.

Os designers em geral, comprometidos com a originalidade e o ineditismo, costumam ter uma noção confusa e duvidosa com relação a identidades nacionais (não somente a brasileira). Afinal, em tempos de globalização e geração y, como definir os traços que caracterizam um povo perante os demais? Particularmente, acho interessante a perspectiva de Rafael Cardoso (2008) sobre a identidade como algo indissociável do conceito de memória.

Acima da influência do contexto circundante, além dos próprios traços hereditários ou inatos, aquilo que torna uma pessoa diferente das outras é a consciência que ela tem de si mesma. Essa consciência está relacionada a uma realidade interior, a experiências pessoais e, portanto, à memória. Em nível coletivo, podemos pensar em movimentos históricos e hábitos populares. Neste sentido, o grande dilema do designer é absorver este grande repertório “memorial” sem deixar a sua própria identidade de lado, isto é, fazer da experiência coletiva e da experiência individual uma única memória a ser projetada. 

Para ilustrar o que eu quero dizer, destaco o trabalho do designer mineiro, e bom amigo, Vicente Pessôa. Creio que uma experiência decisiva em sua trajetória foi o fato dele ter trabalhado com o ceramista Máximo Soalheiro, atuando como observador atento para incorporar um universo no qual os designers não estão imersos. Dentre os poucos designers que eu conheço que também não ignoram as manifestações perpetuadas por muitos anos através do saber popular, vale a pena conferir o trabalho de Tide Hellmeister e Hugo Werner.

Com estes poucos exemplos, creio que é possível notar que a identidade nacional é também indissociável do Imaginário Social: o estado de espírito que caracteriza um povo, uma aura da Cultura, no sentido de ser uma atmosfera que a envolve e, mais que isso, que apresenta características que a antecedem. É assim que o sociólogo Michel Maffesoli (2008) entende a noção de identidade cultural, quase como uma moldura perceptível apenas através da ambiguidade, isto é, aquilo que está ao mesmo tempo oculto e flagrante no cotidiano – confira este artigo para uma visão mais abrangente da relação entre o Design e o pensamento maffesoliano.

O fato é que, se não levarmos em consideração essa moldura que nos enquadra em determinada memória cultural, corremos o risco de uma crescente despersonalização de nós mesmos a favor de uma identidade internacional, de caráter impessoal e universal. Do mesmo modo, a busca por inspirações regionais, vernaculares e popularescas, fugindo porém de nossa memória pessoal e não havendo vínculo algum com aquilo que nós somos e vivenciamos, geralmente resulta em projetos artificiais, impessoais e carentes de significado.

Em ambos os casos, trata-se do pior sentido do termo kitsch, conforme é definido por Milan Kundera (1985, p. 279) em A Insustentável Leveza do Ser: “O kitsch é a negação da merda. (...) O kitsch é a estação intermediária entre o ser e o esquecimento”. Evidentemente, há também projetos que exploram conceitualmente o kitsch em si, aproveitando-se do estranhamento fragmentário de uma aparente falta de identidade de maneira paradoxalmente criativa e autêntica – exemplo disso é este inusitado cartaz desenvolvido por Flávia Nalon. 

Mas o que, afinal, caracteriza a identidade brasileira? Em rápidas palavras, a vivência de uma nostalgia. Não se trata apenas daquilo que já somos (de nossa memória em si), mas especialmente daquilo que desejamos ser, ou seja, o modo pelo qual emolduramos a nossa vida e que nunca está inteiramente explícito no cotidiano (embora implícito em cada um de nós). Pois este desejo é despertado apenas por nossa memória: quando eu vou pra São Paulo, por exemplo, sinto imenso desejo de comer yakisoba na rua.

Neste momento, eu lembro e sei que eu sou paulista, que aquela cidade sou eu. Portanto, mais do que o carnaval ou o futebol, pra mim o yakisoba paulista representa o Brasil. Mas este yakisoba pode representar a identidade brasileira a nível coletivo? Sem dúvida – basta que, enquanto designer, eu consiga expressar essa minha nostalgia de modo que ela também desperte a nostalgia de outros brasileiros, com outras vivências e memórias. 

Há um fundo familiar nisso tudo. Mas há também um fundo impessoal, kitsch e aparentemente forçado, o qual nos dá a impressão constante de não haver uma verdadeira identidade brasileira. Frente a isso, prefiro pensar na noção matemática de identidade algébrica: quando não importa quais são as variáveis e o resultado é sempre igual.

Marcos Beccari nasceu em São Paulo/SP, formou-se em Design Gráfico pela UFPR e atualmente tem lutado contra o tempo para terminar seu Mestrado em Design na UFPR.

original Humanus

Um comentário:

Paulo César disse...

"[...]constante de não haver uma verdadeira identidade brasileira. Frente a isso, prefiro pensar na noção matemática de identidade algébrica: quando não importa quais são as variáveis e o resultado é sempre igual."

Good text.